Tratar dos diversos aspectos que abrangem a gestão dos processos de trabalho em saúde é sempre um desafio para os gestores, especialmente no cenário global de crise, com as inconstâncias políticas e socioeconômicas que vivemos.
A gestão do trabalho em saúde considera as relações de trabalho e suas implicações como centrais para o sistema de saúde. Assim, ela deve estar voltada para lidar com questões como a precarização do trabalho, a ausência de carreiras, os baixos salários, a falta de negociação entre gestores e trabalhadores, a feminilização da força de trabalho, o multiemprego, a formação dos profissionais, como também com as formas de produção da saúde, isto é, como se estrutura o trabalho e para que finalidade ele é produzido.
A gestão do trabalho, portanto, é um eixo estrutural da organização dos serviços de saúde.
Pensar em seus desafios é pensar em como oferecer serviços de qualidade e humanizados à população.
Vamos refletir um pouco mais sobre esses desafios, considerando as mudanças ocorridas no mundo do trabalho e, mais recentemente, as decorrentes da pandemia da covid-19, que impactaram significativamente nos processos de trabalho e nas competências gerenciais na área da saúde.
A valorização de competências depende das demandas do contexto organizacional e, consequentemente, de modelos e práticas gerenciais. Em um mundo marcado por mudanças aceleradas e incontroláveis, a capacidade de conviver com o inusitado se faz cada vez mais importante.
Maria Ester de Freitas (1999) comenta que pesquisadores de distintas áreas do conhecimento revelam um crescente interesse pela compreensão das mudanças velozes que produzem, segundo a famosa expressão de Schumpeter, “destruição criadora” (SCHUMPETER apud FREITAS, 1999, p. 17) sucessiva, sem possibilidade de retorno, cujos pontos de ruptura são provocados por fenômenos incontroláveis e violentos.
Sem dúvida, hoje, vivemos em um estado de mudança, ou seja, a mudança não é um fenômeno pontual. Ela se faz de modo cada vez mais acelerado, como produto da interação social humana e das condições sociais existentes.
O mundo do trabalho contemporâneo não ficou imune a esse estado de mudança, pelo contrário, foi um dos mais impactados.
Os estudiosos investigaram as mudanças ocorridas no mundo do trabalho por perspectivas diversas. Há, entretanto, um ponto comum entre os pesquisadores: a flexibilidade é uma das características do mundo do trabalho contemporâneo.
Esta é enaltecida por muitos, aparecendo como um “mantra” gerencial.
Outros veem na flexibilidade uma estratégia que busca simplesmente o atendimento dos ajustes às flutuações do mercado, ocasionando um custo social de grandes proporções na medida em que gera a precarização das condições de trabalho e desemprego.

Importante dizer que não buscamos defender nem atacar a questão da flexibilidade.
Ao contrário, atestamos a sua existência e buscamos compreender as suas repercussões nas práticas gerenciais e seus impactos nos perfis de competência valorizados pelo atual mundo do trabalho.
Este módulo está organizado em dois temas:
Para continuar seus estudos, siga para o Tema 1.1. Transformações do mundo do trabalho.
As mudanças aceleradas não nasceram no início do século XXI.
Desde o século XX, estas se encontram em “fermentação” no próprio seio das sociedades que lhes servem de cenário (FREITAS, 1999).
Em linhas gerais, o século XX trouxe consigo a marca da aceleração.
O filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin (1936), mostra com maestria o frenético ritmo da sociedade de produção em massa, então, vigente.
O que se observa na sociedade do terceiro milênio, denominada pós-industrial ou sociedade da informação, é que o processo de aceleração foi potencializado, em função da presente revolução tecnológica.
Castells (1999), analisando essa questão, argumenta que a marca da atual revolução nas sociedades, por ele denominadas “conexionistas”, e que outros denominam sociedade do conhecimento e da informação, “não é a centralidade do conhecimento ou informação”, na medida em que ambos sempre foram o motor das revoluções, desde a Primeira Revolução Industrial do século XVIII que, apesar de não se basear em ciência, foi apoiada em um amplo uso de informações aplicando e desenvolvendo os conhecimentos preexistentes.
Para Castells, o que caracteriza a atual revolução tecnológica é a aplicação do conhecimento e da informação para a geração de conhecimento e de dispositivo de processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre inovação e uso.
Dito de outro modo, os avanços tecnológicos permitiram uma geração e distribuição de informação mais veloz e customizada.
A consequência imediata do fenômeno apontado por Castells nos modelos de gestão foi a mudança das premissas que orientam as denominadas “melhores práticas organizacionais”.
A gestão, até então, muito focada na definição da “melhor forma da realização do trabalho”, passa a reconhecer e a valorizar a diversidade e a criatividade.
Contrariamente ao modelo taylorista-fordista, em que prevalecia um sistema autoritário de trabalho, esse novo modelo cria uma organização laboral mais maleável, permitindo que o trabalhador deixe de ser alienado, na medida em que não precisa se limitar ao trabalho prescrito por aqueles que descrevem “a melhor forma” de realizar a tarefa, e passa a participar da concepção do trabalho, como defendido por Antunes e Alves (2004), em sua obra As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital.
Caso tenha interesse, você poderá acessar boas biografias de Frederick Winslow Taylor e Henry Ford, em português, na Wikipédia.
O que queremos enfatizar é que os modelos e práticas gerenciais começaram a ser redesenhados a partir da década de 1990, em função das mutações do conteúdo do trabalho.
Zariffian (2001) resume essas mutações em três conceitos – evento, comunicação e serviço – que demandam uma nova lógica de gerenciamento, distinta do modelo taylorista-fordista.
A lógica emergente impõe uma nova postura gerencial focada no gerenciamento de interações.
Com estas informações, imaginamos que tenhamos aguçado a sua curiosidade quanto à afirmação de que o ambiente externo influencia a concepção de modelos e práticas gerenciais e, também, a valorização dos perfis de competência.
Além disso, como você perceberá mais adiante, são essas mudanças que impõem a necessidade do desenvolvimento de novas competências transversais em gestão.
Logo, compreender as razões dessa dinâmica é fundamental à discussão de processos decisórios.
Resumindo, os impactos da globalização e dos acelerados avanços tecnológicos atropelaram, com seu ritmo frenético, modelos e práticas tradicionais, inclusive no setor saúde, criando um ambiente desafiador, que exige constante adaptação para atendimento do nível crescente das exigências da sociedade.
Vale a pena destacar, ainda, que o maior obstáculo ao enfrentamento desses desafios não reside na adaptação aos aspectos técnicos decorrentes da renovação no gerenciamento.
As evidências constatam que as principais barreiras à mudança estão intimamente relacionadas à transformação das relações sociais no trabalho, condição básica à construção de um novo sistema sociotécnico, onde se estimule a motivação, o envolvimento e o comprometimento do trabalhador com os objetivos da organização.

Vamos fazer uma pausa em nosso estudo para realizar uma atividade de compreensão que visa a reforçar as ideias centrais que caracterizam as principais transformações organizacionais que afetam os modelos e as práticas de gerenciamento.
Leia os três enunciados abaixo e assinale, em cada um, se é Verdadeiro ou Falso. Em seguida, clique no botão Ver respostas para conferir o resultado.
Estudiosos desse tema destacam que a humanidade, ao sofrer as influências das mudanças interconectadas, cujos impactos são amplos, se defronta com rupturas tecnológicas e, em consequência, enfrenta uma modificação de paradigma.
A história revela, também, que as rupturas ocorreram em intervalos seculares, à diferença desta civilização pós-moderna, cujas rupturas acontecem com velocidade sem precedentes, exigindo capacidade de adaptação.
Especificamente, desde os anos 1970, os contextos organizacionais enfrentam a ruptura tecnológica que provocou avanços da tecnologia da informação e comunicação, ampliando em escala global a circulação e o processamento de informações.
Aliada a esta megamudança, a abertura da economia criou condições para a geração da rede global de interdependência que, também, exigiram mudanças.
Gradativamente, práticas de gestão tradicionais vêm sendo substituídas por se revelarem ineficazes quanto à resolução efetiva dos atuais problemas enfrentados pelas organizações contemporâneas.
O que deu certo há décadas tornou-se ineficaz na atualidade. O sucesso do passado rapidamente deixa de ser garantia de sucesso futuro.
Assim, acreditamos que as pressões externas impõem mudanças nos processos de trabalho e, consequentemente, nos modelos e práticas gerenciais, constituindo-se em grandes desafios na atualidade para a gestão do trabalho em saúde – assunto que será tratado no próximo tema deste módulo.
Com isso, finalizamos o Tema 1.1. Agora, você pode avançar para o Tema 1.2. Oprocesso de trabalho em saúde.
Os desafios da gestão do trabalho em saúde ocorrem devido às suas especificidades e aos distintos modos de intervir sobre elas.
Vimos, no Tema 1.1, que as transformações no mundo do trabalho revelaram diferentes configurações, mecanismos de organização, conhecimento e controle de seus processos.
Essas alterações trouxeram também consequências para o setor saúde, principalmente em relação às suas tecnologias e aos modos de trabalho, como a flexibilização, a precarização e o desemprego estrutural. Também é possível observar considerável divisão técnica do trabalho, parcelamento de atos e tarefas, padronização de rotinas.
Porém, a organização do trabalho em saúde não ocorre como nas fábricas. O trabalho em saúde produz atos, efeitos e objetos, como se pode ver a seguir.
O trabalho em saúde deve produzir cuidado, revelando, assim, sua outra importante característica, que é seu caráter relacional.
De um lado encontra-se o usuário, que traz suas necessidades, e, de outro, o profissional de saúde, que busca solucionar ou amenizar o problema a ele apresentado.
O trabalho não é realizado apenas por meio de instrumentos e tecnologias mais estruturados, ele ocorre sempre entre pessoas, e dependerá dos conhecimentos aplicados pelo profissional, não só os específicos de sua atividade, como também daqueles relacionados aos aspectos envolvidos no seu processo de trabalho (MERHY; FRANCO, 2009).
Essas especificidades do trabalho em saúde fazem com que os processos gerenciais sejam também distintos dos demais setores.

Do mesmo modo, é preciso compreender que há distintas lógicas gerenciais construídas no setor saúde: algumas centradas nas necessidades dos usuários, outras voltadas para o desempenho dos trabalhadores ou para os interesses da instituição.
A ação gerencial, portanto, molda e é moldada pelo modelo de atenção que se quer produzir. Segundo Merhy (2007):
"Qualquer modelo de atenção à saúde faz referência não a programas específicos, mas ao modo como se constrói a gestão dos processos políticos, organizacionais e de trabalho que estejam comprometidos com a produção dos atos de cuidar: do individual, do coletivo, do social. Dos meios, das coisas e dos lugares, na promessa de construir a saúde " (MERHY, 2007, p.16).
As mudanças vivenciadas intensamente a partir da pandemia da covid-19 exigiram e continuam a exigir a implementação de novas ações em um curto espaço de tempo, o que vem alterando os modos de gerenciar as organizações de saúde e seus processos de trabalho.
A tomada de decisão que exige atitudes informadas por evidências científicas não foi efetivada em diversos momentos da crise, trazendo como consequências proliferação de informações falsas, atrasos nos insumos para a produção de vacinais, orientações equivocadas, entre outras, agravando drasticamente a crise sanitária no país, demonstrada principal e dolorosamente pelo elevado número de mortes.

Caso queira conhecer mais sobre a gestão informada por evidências, leia os artigos:
Caso queira conhecer mais sobre a gestão informada por evidências, leia os artigos Gestão informada por evidências no Estado de Goiás e Estratégias para estimular o uso de evidências científicas na tomada de decisão (DIAS et al., 2015).
A sobrecarga de trabalho, o sofrimento dos profissionais, o surgimento de novas modalidades de trabalhos, as relações não reguladas entre o setor público e privado, a elevação de preços na cadeia de suprimentos, somados a tantos outros novos desafios que emergiram ou afloraram, demonstram o quanto é complexo o trabalho do gestor da saúde.
Situações não tão novas ficaram mais visíveis na pandemia, revelando a importância de se buscar soluções para os problemas de saúde vivenciados na atualidade, como, por exemplo:
A pandemia também demonstrou um certo esgotamento da forma como está sendo conduzida a política de gestão do trabalho. O trabalho em saúde deve combinar, ao mesmo tempo, o protagonismo dos sujeitos com o controle dos processos. Essa combinação foi realizada de forma muitas vezes antagônica, demonstrando a fragilidade gerencial em muitas situações.
Assim, é necessário (re)conhecer que desafios estão colocados para a gestão do trabalho em saúde para tornar possível repensar a organização da assistência e a prática gerencial.
Segundo Mario Dal Poz (2022), os desafios da gestão do trabalho no país são decorrentes de problemas tanto estruturais como atuais. Conheça os principais, incluindo os que foram intensificados pela pandemia, bem como estratégias para enfrentar os desafios, clicando nos itens a seguir:
São muitos os desafios. Alguns de ordem da macropolítica, outros que podem ser enfrentados no cotidiano do trabalho. Para todos será necessária a reorientação das funções gerenciais que, como estratégia de transformação das práticas, poderá criar condições para a melhoria dos processos de trabalho, da organização dos serviços, e a vida das pessoas, no sentido de ampliar recursos e a resolutividade dos problemas de saúde da população.
Como afirma Gaulejac, (2007):
"A gestão não é um mal em si. É totalmente legítimo organizar o mundo, racionalizar a produção, preocupar-se com a rentabilidade. Com a condição de que tais preocupações melhorem as relações humanas e a vida social. Ora, cada um pode verificar que certa forma de gestão, a que se apresenta como eficaz e de perfeito desempenho, invade a sociedade e que, longe de tornar a vida mais fácil, ela põe o mundo sob pressão " (GAULEJAC. 2007, p.33).
Sendo assim, precisamos construir novos modelos gerenciais. No Módulo 2, vamos conhecer algumas competências gerenciais e modos de gerir que reforçam a importância do estabelecimento de relações interpessoais no enfrentamento das dificuldades atuais para a gestão do trabalho em saúde.
Com isso, finalizamos o Tema 1.2. Agora, você pode avançar para o Módulo 2. Novas exigências da gestão em saúde.