Módulo 2Antecedentes do SUS

Foto: Álvaro Pedreira. Departamento de Arquivo e Documentação/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Introdução

Caso queira assistir novamente ao filme exibido no 1º Encontro presencial, clique em A História da Saúde Pública no Brasil – 500 anos na busca de soluções.
Getúlio Vargas (1884-1954).

É conhecido o fato de que, até o final da década de 1980, a definição de direitos sociais estava restrita à vinculação ao sistema previdenciário, sendo definidos como cidadãos os indivíduos pertencentes às categorias ocupacionais reconhecidas pelo Estado e que contribuíam para a previdência social.

Isso porque, desde as décadas de 1930 e 1940, no período populista de Vargas, o desenvolvimento das políticas sociais se constituiu numa estratégia de incorporação de segmentos da classe média e trabalhadores urbanos ao projeto político de industrialização e modernização do país.

Tal projeto teve grande visibilidade e impacto político, embora não tivesse conseguido, de fato, eliminar a pobreza ou implementar uma redistribuição significativa de renda.

Nesse contexto é que as categorias mais importantes de trabalhadores lograram, desde cedo, nos anos 1930, formar os primeiros Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP) que, contando com financiamento parcial do Poder Executivo, se constituíram nas principais organizações de política social no país.

Entretanto, o acesso a elas e às suas sucessoras esteve limitado apenas aos membros da comunidade localizados nas ocupações definidas em lei e que contribuíam para a previdência social.

A extensão da cidadania se fez mediante essa vinculação profissional, e não pelo reconhecimento da condição de membro da sociedade brasileira.

Não bastava ser brasileiro para gozar de direitos de cidadania social; antes era necessário “ter carteira de trabalho assinada” e contribuir financeiramente para a previdência social, mediante uma modalidade de seguro (recebem benefícios somente aqueles que pagam por eles).

Havia, de fato, o estabelecimento de uma cidadania regulada, de caráter parcial e concedida por meio da articulação entre a política de governo e o movimento sindical.

Dessa forma, acabaram excluídos da cidadania todos aqueles cuja ocupação a lei desconhecia:

  • os trabalhadores na área rural; e
  • os trabalhadores urbanos cujas ocupações não estivessem reguladas.
Foto: Cícero R. C. Omena. Flickr.

Contudo, a tensão entre a manutenção de uma estrutura de privilégios e a necessidade de extensão dos chamados direitos sociais foi permanente no Brasil.

Essa tensão ocorreu não só entre as categorias profissionais privilegiadas – bancários, comerciários, industriários, funcionários públicos, que mostravam marcantes diferenças de acesso aos direitos sociais entre si –, como entre elas e o restante da população.

Veremos, nos próximos temas, como esse processo ocorreu na área da saúde, em que essa mesma lógica delineou o caráter médico-assistencial privatista do modelo de atenção à saúde que prevaleceu até os anos 1980.

Este módulo está organizado nos seguintes temas:

  • Tema 2.1. As origens da medicina previdenciária
  • Tema 2.2. Anos 1970: expansão e crise do modelo médico-assistencial privatista
  • Tema 2.3. Anos 1980: a transição para a seguridade social

Para continuar seus estudos, siga para o Tema 2.1. As origens da medicina previdenciária.

Tema 2.1As origens da medicina previdenciária

A partir de 1945, com a industrialização crescente e com a participação política dos trabalhadores, ocorreu um aumento significativo e progressivo da demanda por atenção à saúde, incidindo sobre todos os institutos.

Tal processo de expansão culminou com a promulgação da Lei Orgânica da Previdência Social (Lops), em 1960, que promoveu a uniformização dos benefícios, ou seja, padronizou o cardápio de serviços de saúde a que todos os segurados teriam direito, independentemente do instituto a que estivessem filiados.

Como a uniformização dos benefícios não foi seguida pela unificação dos institutos e nem significou a universalização da atenção à saúde para toda a população, o resultado foi o aumento da irracionalidade na prestação de serviços, ao mesmo tempo em que a população não previdenciária continuava discriminada, não podendo ser atendida na rede da Previdência.

Por força da necessidade de uma resposta à demanda crescente por serviços de atenção individual, a política previdenciária de saúde, a essa época, já apresentava como características marcantes uma elevada concentração da rede própria nas grandes cidades do país e o caráter exclusivamente curativo do modelo de atenção médica.

A criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, unificando todas as instituições previdenciárias setoriais, significou para a saúde previdenciária a consolidação da tendência à contratação de produtores privados de serviços de saúde, como estratégia dominante para a expansão da oferta de serviços.

Progressivamente, foram sendo desativados e/ou sucateados os serviços hospitalares próprios da Previdência, ao mesmo tempo em que se ampliava o número de serviços privados credenciados e/ou conveniados.

O atendimento ambulatorial, no entanto, continuou como rede de serviços próprios e expandiu-se nesse período.

As consequências dessa política privatizante apareceram rapidamente, corroendo a capacidade gestora do sistema e reforçando a sua irracionalidade:

  • de um lado, a baixa capacidade de controle sobre os prestadores de serviço contratados ou conveniados, já que cada paciente era considerado como um “cheque em branco”, tendo a Previdência de pagar as faturas enviadas após a prestação dos serviços;
  • de outro, era quase impossível um planejamento racional, já que os credenciamentos não obedeciam a critérios técnicos, e, sim, a exigências políticas.

Ao lado disso, explodiam os custos do sistema, tanto em razão da opção pela medicina curativa, cujos custos eram crescentes em função do alto ritmo de incorporação tecnológica, quanto em razão da forma de compra de serviços pela Previdência, realizada por meio das chamadas U.S. (Unidades de Serviço) que, além de valorizarem os procedimentos mais especializados e sofisticados, eram especialmente suscetíveis a fraudes, uma vez que seu controle apresentava enorme dificuldade técnica.

Com isso, encerramos o estudo deste tema. Agora, você pode avançar para o Tema 2.2. Anos 1970: expansão e crise do modelo médico-assistencial privatista.

Tema 2.2Anos 1970: expansão e crise do modelo médico-assistencial privatista

A década de 1970 foi marcada por uma ampliação constante da cobertura do sistema, levando ao aumento da oferta de serviços médico-hospitalares e, consequentemente, a uma pressão por aumento nos gastos.

Ao mesmo tempo, intensificavam-se os esforços de racionalização técnica e financeira do sistema.

A expansão da cobertura dava-se tanto pela incorporação de novos grupos ocupacionais ao sistema previdenciário (empregadas domésticas, trabalhadores autônomos, trabalhadores rurais) quanto pela extensão da oferta de serviços à população não previdenciária.

A demanda crescente por serviços de saúde ocorria no bojo de um processo político de busca de legitimação do regime militar que, principalmente a partir de 1974, com o II Plano Nacional de Desenvolvimento, implementou um esforço de incorporação da dimensão social em seu projeto de desenvolvimento econômico.

As tentativas de disciplinar a oferta de serviços de saúde, por meio de mecanismos de planejamento normativo, como o Plano de Pronta Ação de 1974 e a Lei do Sistema Nacional de Saúde de 1975, não foram capazes de fazer frente aos problemas apontados, já que se restringiam a delimitar os campos de ação dos vários órgãos provedores.

Curiosamente, tais tentativas disciplinadoras, além de apresentarem baixo impacto em termos de racionalização da oferta, causavam o efeito paradoxal de expandi-la, já que propunham a remoção de barreiras burocráticas para o atendimento médico, o que, na prática, viabilizava o atendimento a clientelas não previdenciárias, representando uma espécie de universalização velada do acesso.

A criação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), em 1977, deu-se num contexto de aguçamento de contradições do sistema previdenciário, cada vez mais pressionado pela crescente ampliação da cobertura e pelas dificuldades de reduzir os custos da atenção médica no modelo privatista e curativo vigente.

A nova autarquia representou, assim como o conjunto do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Sinpas), um projeto modernizante, racionalizador, de reformatação institucional de políticas públicas.

Sob a orientação de uma lógica sistêmica, pretendeu-se simultaneamente articular as ações de saúde entre si e estas com o conjunto das políticas de proteção social. No primeiro caso, através do Sistema Nacional de Saúde (SNS); no segundo caso, através do Sinpas.

Como componente simultâneo do SNS e do Sinpas, esperava-se do Inamps o cumprimento do papel de braço assistencial do sistema de saúde e de braço da saúde do sistema de proteção social.

Malgrado sua pretensa racionalidade sistêmica, tal projeto jamais chegou a ter importância significativa na solução ou na prevenção da crise que se avizinhava.

O SNS, de fato, foi mais um protocolo de especialização de funções do que um mecanismo de integração dos dois principais órgãos responsáveis pela política de saúde.

Embora fosse atribuída ao Ministério da Saúde a função reitora na formulação da política de saúde, na prática, era o Ministério da Previdência e Assistência Social que, por deter a maior parte dos recursos públicos destinados à área de saúde, predominava na definição da linha política setorial.

Por sua vez, o Inamps, como o braço da saúde do Sinpas, teve suas ações condicionadas ou limitadas pela disponibilidade dos recursos existentes, já que os benefícios previdenciários (aposentadorias, pensões e outros benefícios), por sua natureza contratual, tinham primazia na alocação dos recursos do sistema.

As despesas do Inamps que, em 1976, correspondiam a 30% do orçamento da previdência social, em 1982 atingiram apenas 20% do total, o que corresponde a uma perda de um terço da participação nos gastos.

Assim, os anos 1970 marcaram a glória e a ruína do sistema de saúde brasileiro, tal como foi desenhado em meados dos anos 1960, no bojo do processo de modernização conservadora experimentada pelo Estado brasileiro sob a vigência do regime militar.

A crise se agravaria nos anos seguintes, abrindo caminho para a reforma do sistema.

Agora, você pode avançar para o Tema 2.3. Anos 1980: a transição para a seguridade social.

Tema 2.3Anos 1980: a transição para a seguridade social

O Inamps inicia, então, a década de 1980, vivendo o agravamento da crise financeira e tendo de equacioná-la, não simplesmente como o gestor da assistência médica aos segurados da Previdência, mas como o responsável pela assistência médica individual ao conjunto da população.

Ou seja, a crise deveria ser enfrentada num contexto não apenas de extensão de benefícios a alguns setores, mas de universalização progressiva do direito à saúde e do acesso aos serviços.

O aumento de serviços e gastos decorrentes dessa ampliação de cobertura teria de ser enfrentado num âmbito de redução das receitas previdenciárias, provocada pela política econômica recessiva que, desde 1977, reduzia a oferta de empregos, a massa salarial e levava ao esgotamento das fontes de financiamento baseadas na incorporação de contingentes de contribuintes.

Nesse quadro, a estratégia racionalizadora favoreceu, de um lado, o controle de gastos, através do combate a fraudes e outras evasões e, de outro, a contenção da expansão dos contratos com prestadores privados, passando a privilegiar convênios com o setor público das três esferas governamentais.

Dessa forma, o Inamps iniciava um processo de integração da rede pública que viria a culminar na dissolução das diferenças entre a clientela segurada e a não segurada.

Foto: Rede Brasil Atual.

Em 1981, o agravamento da crise financeira da Previdência Social provocou uma intensificação do esforço de racionalizar a oferta de serviços, o que acentuou a tendência anterior de integração da rede pública de atenção à saúde.

Sob a pressão da crise financeira, se gestou no interior da Previdência e do Inamps um processo de reforma que, embora inicialmente movido pela necessidade da contenção financeira, terminou se ampliando e incorporando elementos críticos na estrutura do sistema, fosse pelo seu caráter privatista, fosse pela centralização no aspecto médico-hospitalar.

Isso se deu num quadro de perda crescente de legitimidade social e política do sistema, em razão de sua ineficiência e de sua baixa efetividade, viabilizando a presença de técnicos e intelectuais progressistas no interior da máquina burocrática, inspirados nas propostas de equidade e expansão do direito à saúde, então sintetizados no lema internacional:

Foto: Álvaro Pedreira. Departamento de Arquivo e Documentação/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

O advento da Nova República, em 1985, representou a derrota da solução ortodoxa privatista para a crise da Previdência e o predomínio de uma visão publicista, comprometida com a reforma sanitária.

A 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1986, alcançou grande representatividade e cumpriu o papel de sistematização técnica e disseminação política de um projeto democrático de reforma sanitária, voltado para a universalização do acesso, equidade no atendimento, integralidade da atenção, unificação institucional do sistema, descentralização, regionalização, hierarquização da rede de serviços e participação da comunidade.

Quanto ao Inamps, estabeleceu-se a progressiva transferência aos estados e municípios de suas unidades, recursos humanos e financeiros, atribuições de gestão direta e de convênios e contratos assistenciais, e sua completa reestruturação para cumprir funções de planejamento, orçamentação e acompanhamento. A extinção legal do Inamps, ocorrida em julho de 1993, deu-se de forma quase natural, como consequência de seu desaparecimento orgânico e funcional no emergente SUS.

A nova Constituição Federal de 1988 instituiu o SUS, cuja formatação final e regulamentação ocorreram mais tarde, em 1990, com a aprovação da Lei n. 8.080 e da Lei n. 8.142 e mais recentemente com o Decreto-Lei n. 7.508, de 28/06/2011.

Com isso, finalizamos o Tema 2.3. Siga, agora, para o Módulo 3. Configuração legal e técnica do SUS.