Como vimos no Tema 1.7, existem instrumentos de planejamento que auxiliam na organização da rede de serviços de saúde. Mas o planejamento não se restringe à simples elaboração de um plano, ou à definição de normas a serem seguidas por todos os que trabalham numa dada instituição ou, ainda, ao cálculo de todos os recursos – materiais, humanos ou financeiros – necessários para que um determinado programa ou serviço funcione.
Embora todas as atividades citadas acima possam (e devam) fazer parte do processo de planejamento, este é muito mais amplo do que alguns de seus aspectos operacionais.
Pode-se dizer que o planejamento parte de uma visão de como as coisas deveriam ser e permite definir que caminhos seguir para chegar até lá. Dito de outra forma, planejar consiste em decidir com antecedência o que fazer para mudar as condições atuais, de modo a alcançar os objetivos que nos colocamos. E pensar e instituir mudanças é sempre complexo, pois envolve pessoas com distintos interesses e motivações.
Nosso convite é que você compreenda esse processo como:

“Uma prática social que, ao tempo em que é técnica, é também política, econômica e ideológica. É um processo de transformação de uma situação em outra, tendo em conta uma dada finalidade e recorrendo a instrumentos (meios de trabalho tais como técnicas e saberes) e a atividades (trabalho propriamente dito), sob determinadas relações sociais, em uma dada organização” (PAIM, 2006).
Para melhor compreensão desse conceito, este módulo está organizado nos seguintes temas:
Agora você pode avançar para o Tema 2.1. As singularidades das organizações de saúde e os desafios do planejamento.
Há um reconhecimento contemporâneo de que a gestão dos serviços de saúde é a mais complexa entre todos os sistemas sociais, por várias singularidades que estão presentes nas organizações de saúde. Tais particularidades precisam ser reconhecidas para que os processos de planejamento, de fato, levem em conta o contexto em que serão desenvolvidos e como o poder se distribui entre os trabalhadores e entre estes e os gerentes.
Reflita sobre as questões que trataremos ao longo desse tema fazendo uma analogia entre um hospital e qualquer outra organização que não seja de saúde, como uma escola ou uma fábrica, por exemplo.
Para iniciar, destacamos (MENDES, 2019):
Esses sistemas acompanham as pessoas por toda a vida, do nascimento à morte, sendo a saúde um bem inalienável, mas sujeito a riscos imprevisíveis. A prestação desses serviços abriga uma importante dimensão ética e moral.
Esses sistemas são diretamente influenciados pelas mudanças demográficas e epidemiológicas da população e pelas constantes transformações cognitivo-tecnológicas do saber e do fazer em saúde.
Há uma multiplicidade de elementos que os compõem, além da diversidade de atores sociais com diferentes objetivos, interesses e representações.
Exemplo: saúde como mercadoria ou como bem essencial à vida.
Há uma forte assimetria de informação entre os profissionais de saúde e os usuários dos serviços.
Os resultados são de difícil mensuração, pela quantidade de variáveis existentes em um processo por exemplo, de cura de uma determinada patologia –, além de o produto (o cuidado em saúde) não ser ‘estocável’, mas sim consumido no próprio ato do cuidado.
EDDY, David Clinical decision making: from theory to practice. Practice policies: what are they? JAMA, n. 263, p. 877-878, 1990.
Ressaltamos que, desses quatro fatores elencados, apenas o último é passível de algum controle gerencial nos serviços de saúde.
Os profissionais têm autonomia para adaptar os serviços às características dos usuários, havendo grande variabilidade nos procedimentos clínicos e, também, nas decisões gerenciais, sem necessariamente resultar numa melhor qualidade na atenção à saúde.
Essas variações explicam-se por razões culturais, pelas ideologias das escolas formadoras, pelos incentivos embutidos nas formas de pagamento, pela disponibilidade de serviços e pela falta de evidência dos procedimentos, entre outras.
Sobre a variabilidade da prática clínica, vale destacar um estudo realizado por Starfield (2001), que demonstrou a grande variabilidade no uso de determinadas tecnologias entre países industrializados.
Por exemplo:
A autora questiona a utilidade das crescentes intervenções médicas, incluindo a tecnologia diagnóstica e terapêutica e os medicamentos, para a melhoria das condições de saúde da população. Isso porque, para cada intervenção diagnóstica, há a possibilidade de um efeito adverso ou mesmo morte, quer dizer, o uso inadequado da tecnologia pode aumentar o número de efeitos adversos, em vez de melhorar a saúde do indivíduo.
Ela utiliza, como exemplo, o uso indiscriminado do teste de esforço para verificar a possibilidade de existência de doenças cardíacas em pessoas que querem iniciar atividades físicas. Se todas essas pessoas fizessem o teste, haveria mais mortes pelo efeito desses exames do que mortes súbitas na prática de exercícios.
Além dessas singularidades, há uma tipologia desenvolvida por Mintzberg (1995), que nos ajuda a compreender como acontecem as relações de poder e de comando e controle nas organizações.
Esse autor sugere que as organizações são constituídas por cinco diferentes partes: núcleo operacional, linha intermediária, cúpula estratégica, tecnoestrutura e assessoria de apoio. Selecione, na figura, cada uma das partes para conhecer mais sobre elas.
Com pessoas de responsabilidade global pela organização.
Composta de analistas que planejam e padronizam o trabalho dos operadores.
Para prover serviços indiretos.
Formada por supervisores.
Composto por operadores que produzem os bens e serviços.
O núcleo operacional é ligado à cúpula estratégica pela linha intermediária, formando a hierarquia da linha de autoridade formal. A tecnoestrutura e a assessoria de apoio são separadas da linha de autoridade, influenciando indiretamente o núcleo operacional. Essas estruturas estão ligadas por um sistema de crenças, representações e tradições que compõem a cultura da organização.
Em função das formas como as partes interagem, ou seja, como se dão os fluxos de autoridade, de processos de trabalho, de informação e de tomada de decisão, as organizações são classificadas em sete configurações principais: empreendedora, mecanicista, profissional, diversificada, inovadora, missionária e política.
Nessa perspectiva, a organização de saúde é tipificada como “organização profissional ou burocracia profissional”, pois depende fundamentalmente dos operadores, no caso os trabalhadores da assistência, para seu bom desempenho. Em um hospital podemos dizer que cada uma das partes é composta conforme representação na Figura 2. Selecione, na figura, cada uma delas.
Representa a direção do hospital.
Formada pela Comissão de Controle de Infecção Hospitalar, Serviço de Gestão de Qualidade, Serviço de Desenvolvimento de Pessoal, Serviço de Planejamento, Controladoria, Auditoria Interna, Comissão de Revisão de Prontuários e outras estruturas que pretendem “controlar” ou “dar diretrizes” para o trabalho do núcleo operacional.
Formada por supervisores.
Formada por almoxarifado, setor de compras, lavanderia, alimentação, departamento de pessoal etc.
Composto pelos trabalhadores da assistência.
O principal processo de trabalho – cuidar do paciente – depende da atenção especializada; em consequência, o papel da tecnoestrutura, dos gerentes e do lócus de tomada de decisão pode ficar limitado. Isso gera tensões entre o poder técnico concentrado na base da organização – núcleo operacional – e o poder administrativo da direção, com suas funções de coordenação – cúpula estratégica superior.
Nas organizações de saúde a existência dessa dupla linha de autoridade cria problemas de coordenação e responsabilidades (CECÍLIO, 1999).
O princípio da autonomia profissional, regulada externamente às organizações por meio dos conselhos de classe, é essencial para o trabalho especializado eficiente e adaptado às demandas específicas dos usuários. Entretanto, opõe-se ao princípio da autoridade administrativa, controle e coordenação das ações como um todo e dificulta o trabalho de equipe nos serviços de saúde devido aos limites disciplinares e corporativos.
Em síntese, o poder não está concentrado em ponto algum – muito menos na cúpula estratégica – sendo, portanto, difuso, desconcentrado. Nem no âmbito do núcleo operacional o poder é concentrado, pois existe uma grande diferenciação entre as especialidades, gerando uma contradição colocada pelo caráter complexo ou interdependente do trabalho em saúde.
Nessa perspectiva, o planejamento e a gestão dos serviços de saúde devem considerar essas particularidades supracitadas e desenvolver práticas compatíveis com uma “organização profissional’, como
Analisar, permanentemente, as relações de poder, identificando os diferentes interesses, tendo em vista o estabelecimento de estratégias de aglutinação de poder.
Constituir espaços regulares para explicitação dos interesses e dos conflitos, com negociação, estabelecimento de compromissos e responsabilização para trazer ao processo decisório, como sujeitos de formulação de diretrizes, indivíduos e grupos antes considerados objetos da ação gerencial.
Definir protocolos de rotinas, discussão de casos clínicos e avaliação de condutas com mecanismos de controle de qualidade e de imputabilidade administrados de maneira transparente (DUSSAULT, 1992).
Assegurar a autonomia profissional e, ao mesmo tempo, prevenir a incompetência, enfrentando a tensão permanente entre microdecisão clínica e microdecisão gerencial.
Desenvolver sistemas de incentivos para os bons profissionais em uma relação de parceria, motivando-os a responder por melhores resultados em termos de eficiência, qualidade e efetividade.
Trabalhar com a avaliação tecnológica na definição de critérios para incorporação de equipamentos de alta complexidade. Há necessidade de otimização dos recursos de alta densidade tecnológica mediante um estudo criterioso da demanda.
A compreensão das características dessas organizações, do processo de trabalho, da dinâmica e estrutura é fundamental para o debate sobre possibilidades de novas formas de articulação, negociação e agregação de interesses que aumentem a efetividade das ações frente ao público.
Sabendo que o poder nas organizações de saúde vem dos profissionais que prestam diretamente a assistência, como promover a interação destes com os centros decisórios? Como tornar as decisões administrativas mais sensíveis aos problemas assistenciais e os profissionais de saúde mais sensíveis às consequências econômicas de seus atos?
Isso pode se viabilizar em um sistema gerencial baseado na negociação permanente e valorização dos atores internos para que se diminua o conflito entre a gestão e a assistência, com os profissionais da ponta participando das decisões operacionais.


O professor Gilles Dussalt, consultor da OMS, detalha melhor a teoria do Mintzberg nas organizações de saúde em A gestão dos serviços públicos de saúde: características e exigências (DUSSALT, 1992). Leitura obrigatória para todos os trabalhadores da saúde!

Vamos encerrar o estudo deste tema com uma atividade de aplicação prática.
O Brasil é um dos líderes mundiais em cesarianas, com taxas de 46% no SUS e de 88% no Sistema de Saúde Suplementar, segundo a pesquisa Nascer no Brasil. O parâmetro aceitável pela OMS é de 15%.
Pelo que vimos até agora, e sabendo que essa forma de intervenção acarreta mais risco de infecção puerperal e elevação de gastos para o sistema de saúde, que fatores poderiam explicar tal variabilidade na assistência ao parto?
Antes de responder, leia o artigo Incidência de cesáreas segundo fonte de financiamento da assistência ao parto (YAZLLE, M. E. H. D. et al., 2001), também disponível na Biblioteca do curso.
Acesse também as informações sobre a pesquisa Nascer no Brasil.
Digite suas ideias no espaço a seguir e, quando terminar, clique no botão salvar. Depois, veja se você considerou, em sua resposta, os pontos considerados nos comentários.
Você já sabe que a gestão dos sistemas de serviços de saúde é a mais complexa entre todos os sistemas sociais. Destacamos as características direta ou indiretamente relacionadas à atividade em questão, e que permeiam também as discussões do artigo indicado para leitura:
A pesquisa descrita no artigo indicado como suporte (YAZLLEA et al., 2001, op. cit.) conclui que:
"[...] a incidência de cesariana variou segundo a categoria de internação, observando-se um gradiente crescente à medida que se elevou o padrão social das gestantes, não havendo correspondência com o risco obstétrico."
Se essa correlação não existe:
"[...] nas categorias de elevada incidência de cesarianas não foram encontrados, na maior parte dos casos, os diagnósticos que justificassem a indicação da cesárea, baseada em critérios técnicos."
Ou seja, se não há evidência descrita para a adoção do parto cesáreo, sugere-se que:
"[...] A diferença entre as modalidades assistenciais ao parto conduz a diferentes padrões de assistência, interferindo na incidência de cesáreas."
As gestantes de melhor nível socioeconômico normalmente realizam o pré-natal diretamente com o seu obstetra e desenvolvem um padrão de relacionamento (e assistência) diferenciado em relação às gestantes que utilizam o SUS e, muitas vezes, só conhecerão seu obstetra na hora do parto. Ou seja:
"[...] uma série de variáveis que podem influenciar no tipo de contrato que se estabelece entre a paciente e o médico."
"[...] se for assumida a indicação por fatores extratécnicos, tais como padrão assistencial e contrato, poderia ser explicada a elevação dessas taxas, pois responderia ao desejo da paciente e/ou da família de um parto com resolução “segura” e sem sofrimento, como é culturalmente difundido no Brasil. Nesse caso, a cesárea, como modalidade de resolução ao parto, equivale a um recurso técnico a ser incorporado por quem o deseja e tem poder de custeá-lo. Esse tipo de parto teria sido transformado em objeto de consumo acessível segundo o padrão de renda, o que viria explicar ser mais incidente nos grupos de maior renda, embora de menor risco obstétrico."
Se tiver alguma dúvida, entre em contato com o tutor a fim de obter mais esclarecimentos.
Compreendendo as singularidades de uma organização de saúde, como planejar e implementar uma intervenção? Como mudar uma situação considerada indesejada? Passe agora ao Tema 2.2, onde discutiremos os conceitos estruturantes do planejamento em saúde.
A partir do desenvolvimento das várias vertentes do planejamento, e de suas sucessivas releituras e reelaborações, foi sendo desenvolvida uma série de abordagens e métodos de planejamento das organizações e uma vasta literatura, na qual são utilizadas diferentes terminologias. Dentre essas abordagens oriundas das organizações privadas podemos citar o Balanced Scorecard, o Mapa Estratégico, a Análise Prospectiva de Cenários e a Análise SWOT.
Tal variação relaciona-se ao acúmulo de conhecimento da organização e aos objetivos que se perseguem, desde uma simples projeção de tendências a modelos complexos com base em diferentes marcos teóricos e conceituais.
Nesse sentido, não existe “o” método de planejamento a ser utilizado em todas as instâncias, capaz de dar conta de todas as situações. Dependendo de quem planeja, do contexto e dos objetivos são utilizados elementos e enfoques dos diferentes métodos.
Fica claro, então, que as primeiras questões a serem respondidas ao iniciarmos o processo de planejamento são exatamente:
Se os objetivos não estão claros, ainda que se possa alcançar algum controle sobre as atividades que são realizadas e o consumo de recursos e fazer com que as coisas “andem”, este é um processo sem planejamento, sem direção, sem que se saiba aonde se quer chegar e sem saber aonde nos levarão os caminhos que estamos trilhando.
A falta de definição de onde se quer chegar também faz com que, na prática, muitas vezes nos esqueçamos de algo que parece evidente:

Sem planejamento, esse objetivo é perdido de vista e passa-se a considerar a própria administração de recursos – materiais, humanos e, principalmente, financeiros – como o objetivo final.
Ou seja, o que são meios, passam a ser os fins.
No entanto, ainda que seja essencial a definição dos objetivos a serem alcançados, também é preciso evitar uma armadilha comum: que o processo de planejamento e o plano resultante fiquem restritos a simples declarações de como “o mundo deveria ser”.
Um bom plano é testado na prática e, por definição, deve ser factível tecnicamente e viável politicamente, sob o risco de se transformar apenas em um exercício para quem planeja. Além disso precisa estabelecer claramente de que forma operacionalizar as intervenções propostas e, se as condições para sua viabilização não estão completamente disponíveis, apontar as estratégias para criá-las.
Nessa perspectiva, adotamos predominantemente os fundamentos do planejamento estratégico por ser amplamente utilizado nos serviços de saúde da América Latina.
Entre as vertentes básicas do enfoque estratégico encontra-se o pensamento estratégico de Mário Testa, que desenvolveu toda uma linha de formulação voltada para a discussão:

Para conhecer melhor o pensamento de Mário Testa você pode acessar o artigo de Lígia Giovanella (1990), professora da ENSP/Fiocruz, no site SciELO Brasil: Planejamento Estratégico em Saúde: uma discussão da abordagem de Mário Testa
Além dessa vertente, o Planejamento Estratégico Situacional (PES), desenvolvido pelo chileno Carlos Matus (MATUS, 1993), surge no âmbito mais geral do planejamento econômico-social e vem sendo crescentemente adaptado e utilizado em áreas como saúde, educação e planejamento urbano, por exemplo.

Vamos agora conhecer os conceitos-chaves do PES, que serão aplicados neste curso em duas perspectivas distintas: para organizar a rede de serviços de saúde, ainda nesta unidade, e para elaborar um projeto de intervenção no nível local da saúde, na UA 4. Vejamos os conceitos a seguir:
A preocupação central que orienta o pensamento de Matus centra na necessidade de aumentar a capacidade de governar. Isso requer articular continuamente três variáveis que compõem o triângulo de governo: projeto de governo, capacidade de governo e governabilidade do sistema.
O esquema a seguir mostra as relações de condicionamento que um plano estratégico deve explicitar.
O projeto de governo (P) refere-se aos projetos de ação que um ator e/ou equipe se propõe a realizar para alcançar seus objetivos. Os fins que devem ser alcançados, os compromissos de mudança, a superação dos problemas. É o “quero fazer”.
A capacidade de governo (C) diz respeito à experiência, às habilidades e à acumulação de conhecimentos técnicos necessários para implementar o plano. É o “sei como fazer”.
Já a governabilidade (G) se refere às variáveis ou recursos que a equipe controla ou não e que são necessários para implementar seu plano. As condições para sustentar o plano em um ambiente de diferentes interesses. É o “posso fazer” (MATUS, 1991).
Trazemos aqui a abordagem de Elizabeth Artmann, professora da ENSP/Fiocruz com ampla produção sobre o uso do PES na saúde. Veja o que ela diz sobre o problema e o ator no artigo O planejamento estratégico situacional no nível local: um instrumento a favor da visão multissetorial (2000, p. 4):
O PES é um método de planejamento por problemas e trata, principalmente, dos problemas mal estruturados e complexos, para os quais não existe solução normativa ou previamente conhecida, como no caso daqueles bem estruturados. É importante destacar que, embora se possa partir de um campo ou setor específico, os problemas são sempre abordados em suas múltiplas dimensões – política, econômica, social, cultural etc. – e em sua multissetorialidade, pois suas causas não se limitam ao interior de um setor ou área específicos e sua solução depende, muitas vezes, de recursos extrassetoriais e da interação dos diversos atores envolvidos na situação. [...]
Um problema não pode ser apenas um “mal-estar” ou uma necessidade sentida pela população. Um problema suscita a ação: é uma realidade insatisfatória superável que permite um intercâmbio favorável com outra realidade. Este é um ponto muito importante na abordagem matusiana, que significa que um problema nunca é “solucionado” definitivamente, mas uma intervenção eficaz na realidade deve produzir um intercâmbio positivo de problemas.
Outro ponto fundamental é a necessidade de que seja definido e declarado como problema por um ator, disposto e capaz de enfrentá-lo.
O ator, para Matus (1994b), deve preencher três critérios:
O ator pode estar representado pela direção de um sindicato, de um partido político ou de uma associação de moradores, considerando-se vários subatores (por exemplo, o presidente do sindicato pode ter uma posição e outro membro importante, outra), ou pode ser uma pessoa: o prefeito, o secretário de saúde ou de educação. Alguém deve sempre responder pelo plano, portanto não é correto nem útil dizer que a secretaria de saúde ou a prefeitura são os atores. Nesse caso, o prefeito e o secretário de saúde seriam os atores.
Matus (1994b) chama a atenção para o fato de que um assessor não é ator, podendo ser chamado de autor do plano. Portanto, um grupo responsabilizado pela elaboração de um projeto não pode ser considerado um ator; a autoridade que o instituiu é que representa o ator. É importante ter claro o ator que assina o plano. Este sempre controla pelo menos algumas variáveis relevantes na situação e, além do ator-eixo ou ator principal, os outros atores que controlem recursos ou variáveis importantes devem ser considerados.” (ARTMANN, 2000, p. 4, grifos nossos).
Nessa perspectiva, podemos definir assim os conceitos:
Problema ou situação-problema: aquela identificada/escolhida mediante a avaliação dos resultados insatisfatórios que se observam na realidade, os quais são percebidos a partir do não cumprimento ou divergência em relação a normas ou padrões considerados válidos. E que são passíveis de intervenção no âmbito de ação do ator que declara o problema.
Ator: uma pessoa ou grupo com projeto político, controle de algum recurso e capacidade para enfrentar o problema.
Na próxima unidade, você, como ator, definirá junto com o tutor uma situação-problema relacionada ao seu trabalho para implementar um plano de intervenção utilizando um método simplificado, com base no referencial do PES.
O poder pode ser entendido como a capacidade de ação, de mobilização e de representatividade tanto do ator, que declara o problema, quanto das demais pessoas ou grupos de interesse envolvidos na questão. E, como vimos no Tema 2.1, nas organizações de saúde o poder é difuso e não se concentra na hierarquia. Pessoas com capacidade de liderança e mobilização acumulam poder mesmo não estando em cargos de “chefia”.
Além disso, se relaciona ao grau de controle sobre os recursos necessários à efetivação do plano. Se os recursos forem:
Para explicar este e o próximo conceito trazemos a abordagem do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva (Nescon) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"Estratégia vem do grego strategos e era utilizado para denominar os generais que comandavam as guerras na Grécia antiga. Geralmente, a palavra estratégia nos remete à ideia da existência de conflito.
Por que o planejamento deve ser estratégico e associado à ideia de conflito ou de disputa?
Porque quando estamos diante de uma situação qualquer, ou de um problema qualquer, geralmente existem diversos atores sociais com diferentes visões, propósitos, interesses e compromissos relacionados a essa situação ou problema.
São essas diferenças que colocam a possibilidade de conflitos. Existindo conflitos, é preciso que se raciocine estrategicamente para que os objetivos estabelecidos sejam alcançados. Não se pode cometer o grave erro de pensar que só nós estamos planejando ou que o outro também pensa como eu.
Podemos entender que estratégia é, basicamente, uma maneira de construir viabilidade para um plano elaborado, visando alcançar determinados objetivos.” (FARIA; CAMPOS; SANTOS, 2018, p. 24. grifo nosso).
Leia a abordagem do Nescon/UFMG sobre o conceito de situação.
"Para Matus (1991), o conceito de situação expressa a condição a partir da qual os indivíduos ou grupos interpretam e explicam uma realidade.
Uma situação pressupõe a existência de atores sociais que interpretam e explicam a realidade, estando, portanto, colocada a possibilidade de conflitos, já que os atores envolvidos podem ter interesses e objetivos diferentes.
Entende-se que num processo de planejamento a perspectiva daquele que planeja é apenas uma das possíveis leituras da situação. Portanto, é fundamental que sejam devidamente consideradas as interpretações da realidade formuladas por outros atores sociais, o que pode exigir a formulação de estratégias para superar possíveis conflitos.
INTERPRETAÇÕES DA REALIDADE
Um grupo que planeja ações contrárias à implantação de uma indústria em um determinado município, pelos riscos ao ambiente e, consequentemente, à saúde de sua população, deve levar em consideração que existem vários outros atores interessados na questão que podem ter posições diferentes, tais como: a população desempregada, o prefeito do município que quer aumentar a arrecadação de impostos, o dono do capital que busca isenção de impostos.
Essa reflexão ajuda a perceber que uma explicação ou análise sobre uma determinada situação depende necessariamente de:
Diferentemente do planejamento tradicional que considera possível haver um conhecimento único e objetivo da realidade, no PES o conhecimento e a explicação da realidade dependem da inserção de cada ator e, portanto, são sempre parciais e múltiplos. [...]
Uma situação constitui-se num espaço de produção social. Uma determinada situação expressa a condição, a partir da qual indivíduos ou grupos interpretam e intervêm nessa realidade.
Uma análise situacional é o conhecimento sobre o modo como é produzida uma determinada situação. Essa explicação ou análise é sempre parcial e múltipla.” (FARIA; CAMPOS; SANTOS, 2018, p. 25. grifos nossos).
Esse conceito será bem explorado no que tratará do Momento Explicativo do PES.
Com isso, finalizamos o Tema 2.2. Siga, agora, para o Tema 2.3. Os momentos para realização do planejamento em saúde.
Como já vimos anteriormente, o planejamento pode ser definido como o processo pelo qual nós determinamos quais caminhos tomar para se chegar à situação desejada. Significa, portanto, definir de antemão o que fazer para mudar as condições atuais de forma a se alcançar a condição definida como desejável.
As definições sobre aonde chegar e quais os objetivos a serem alcançados não são únicas nem universais e variam de acordo com quem planeja e com o método de planejamento adotado.
Propósitos e objetivos diferenciados levam a modalidades distintas de planejamento. Esse é o caso, por exemplo, no setor governamental, dos níveis federal, estadual, municipal e local, com suas distintas competências.

Antes de discutir o processo de planejamento, caberia esclarecer algumas premissas, alguns pontos de partida.
O objetivo principal do planejamento em saúde é a saúde e seu propósito é contribuir para a melhoria do nível de saúde da população tanto quanto seja possível, dado o conhecimento e os recursos disponíveis.
Embora isso possa parecer evidente, muitas vezes as estratégias de intervenção propostas estão dirigidas centralmente à gestão operacional dos serviços ou ao controle da utilização de recursos, especialmente de recursos financeiros, sem que se tenha clareza de que forma essas atividades contribuirão para que a população seja mais adequadamente tratada – e assim a gestão dos meios passa a ser um fim em si mesma.
É comum encontrarmos, por exemplo, “planos” que propõem a realização de determinado número de consultas e outros procedimentos (em geral, propostas de aumento significativo) ou novos investimentos em recursos – físicos, humanos ou financeiros – sem que, em nenhum momento, seja considerado de que forma as ações propostas modificarão a situação atual – e, menos ainda, que impacto terão sobre as condições de saúde da população ou grupos a que se destinam.
O plano é um instrumento flexível. Embora ele represente os resultados de todo o processo de diagnóstico, análise e elaboração técnica e política – expressando acordos e pactos –, sua utilidade é servir como bússola para nortear as atividades que são realizadas. É apenas um instrumento, um meio para obter orientações sobre como concretizar as mudanças desejadas.
O plano deve ser avaliado continuamente e readaptado de acordo com as dificuldades encontradas na prática. Portanto, não só pode como deve ser modificado e atualizado à medida que se realiza o processo de avaliação de sua implantação. Quando o plano é assumido de forma inflexível, isso não permite que o próprio processo de mudança ocorra, ao serem ignorados os limites que a realidade impõe e as adequações que se fazem necessárias.
O plano não deve ser apenas a expressão dos desejos de quem planeja, ou simplesmente uma declaração de como o mundo “deveria ser”. Os objetivos e as estratégias expressos no plano devem ser factíveis do ponto de vista técnico e viáveis do ponto de vista político, guardando, portanto, relação com a realidade. Se for diagnosticado que não há condições para que mudanças consideradas essenciais sejam realizadas, faz parte do processo de planejamento – e deve constar do plano – o desenho de estratégias que ajudem a criar essas condições num futuro próximo.
O planejamento está necessariamente relacionado à ação, e é na prática que o plano se justifica. Um “plano” com um diagnóstico muito bem elaborado e com estratégias e propostas de intervenção muito bem apresentadas, mas infactíveis e inviáveis, que esbarram nos limites da realidade, no “poder da política”, pode ser um exercício bem elaborado, mas não é um plano.
Passemos agora ao método propriamente dito do planejamento a partir do referencial do PES e também da gestão de projetos.
O PES trabalha com o conceito de “momentos” em substituição à ideia de “etapas” estanques, numa sequência rígida. Os momentos constituem uma dinâmica permanente. Matus conformou o PES em quatro momentos básicos: explicativo, normativo, estratégico e tático-operacional.
Veremos com detalhes cada um desses momentos nos próximos módulos, mas, para a compreensão geral do processo, apresentamos:
O Momento Explicativo pressupõe conhecer a situação atual, buscando identificar, selecionar e analisar os problemas e explicar suas possíveis causas. Nesse momento faz-se a análise situacional inicial, que também pode ser chamada de diagnóstico situacional. O mais importante é utilizarmos o conceito de “situação” para que tenhamos análises mais próximas à realidade.
O Momento Normativo se refere ao desenho do “deve ser”, considerando a construção da situação-objetivo. Nesse momento, a equipe define os objetivos e desenvolve um plano que possa resolver ou amenizar as causas geradoras dos problemas levantados. Portanto, é nesse momento que o Plano de Ação deve ser elaborado.
No Momento Estratégico, o objetivo é analisar e construir viabilidade para as propostas de solução elaboradas. Deve-se avaliar a governabilidade e a posição de todos os atores envolvidos e buscar apoio para a execução do Plano de Ação. Nesse momento deve-se verificar se as condições e os recursos necessários estão disponíveis.
O Momento Tático-Operacional se dedica a converter todos os cálculos, análises e desenhos realizados nos três primeiros momentos em ação propriamente dita. É o momento de execução do plano, caracterizando-se por sua execução, adaptações, ajustes, monitoramento e avaliação constante.
Apesar das suas especificidades, esses momentos encontram-se intimamente articulados e se complementam na prática do planejamento, em uma relação dinâmica. A todo momento revisamos nossa situação, assim como a evolução dos nossos problemas e suas explicações, a fim de revisar as ações propostas, viabilizar as intervenções e avaliar os resultados.
A habilidade do planejador e/ou da equipe de planejamento é medida por sua capacidade de articular as diversas abordagens que caracterizam cada um desses momentos. Na verdade, o planejador deve tratar, ao mesmo tempo, de questões que se referem tanto ao curto como ao longo prazo, ao presente, bem como ao futuro.
Para maior aprofundamento, recomendamos que assista ao vídeo do professor Ruben Matos, do Instituto de Medicina Social da Uerj, sobre o planejamento em saúde.
Esperamos que você já possa identificar e descrever as principais características dos momentos de planejamento discutidos neste tema.

Leia o caso a seguir e depois procure identificar cada um dos momentos do planejamento.
O diretor da Policlínica Flor de Maio convoca os trabalhadores da clínica de cardiologia para uma reunião. Nessa reunião o diretor relata que está muito preocupado com o número de reclamações na Ouvidoria sobre a dificuldade de marcação de consultas e acompanhamento nessa especialidade e sugere que juntos possam avaliar a situação e identificar possíveis causas do problema. Após fazerem um brainstorming (tempestade de ideias), listam uma série de causas que possam estar provocando tal situação. A partir dessas causas os trabalhadores elaboram um conjunto de possíveis soluções descritas em objetivos, ou seja, as ações necessárias para elucidar as causas e resolver o problema. Com as possíveis soluções definidas no plano de ação, a equipe vai procurar envolver todos os atores a fim de verificar a viabilidade e os recursos necessários para a implantação das ações. Assim, após o plano ser discutido e validado pelos atores envolvidos no processo, ocorrerá sua implementação, estabelecendo as formas de monitoramento e avaliação das ações.
Agora correlacione os quatro momentos do PES às suas devidas características:
Agora que você já estudou as noções gerais da lógica do planejamento em saúde, vamos detalhar esses momentos, com o objetivo de auxiliar na construção futura de um projeto de intervenção com base nos instrumentos adaptados do PES.
Com isso, finalizamos o estudo dos temas do Módulo 2. Agora você pode avançar para o Módulo 3. O Momento Explicativo do PES: realizando o diagnóstico da situação em saúde.