A nova institucionalidade do setor saúde começou a ser desenhada em 1986, por ocasião da 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília, com cerca de quatro mil participantes, sendo mil delegados votantes, representando diversos segmentos da sociedade.
Nessa conferência, precedida de sessões nos estados, foram estabelecidos os fundamentos do futuro SUS.
Neste módulo, vamos discutir como se deu o processo de mudança da política de saúde no Brasil no final da década de 1980 do século passado, a partir dos amplos debates na imprensa, nos sindicatos, nos partidos políticos de oposição, nas instituições de ensino e pesquisa e em movimentos populares.
A 8ª Conferência Nacional de Saúde contribuiu decisivamente para formar consensos quanto ao diagnóstico crítico sobre o sistema de saúde vigente e elaboração de uma agenda de mudanças, que ficou conhecida como a Agenda da Reforma Sanitária.
Resultou de discussões em plenária e em grupos de trabalho e consagrou a saúde como direito universal do cidadão e como dever do Estado.
No plano das relações entre os diferentes níveis de governo, a estratégia das Ações Integradas de Saúde (AIS), seguida pelo Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), prevaleceu como diretriz básica para assegurar a descentralização e a mudança de ênfase no financiamento ao setor.
O amplo consenso então formado foi a base do futuro texto constitucional.
Todo esse processo possibilitou que o debate sobre saúde na Assembleia Nacional Constituinte se pautasse numa proposta de mudanças mais orgânicas e articuladas, diferentemente da maioria dos outros setores de políticas públicas.
Assim, com a nova Constituição de 1988, é fundado o arcabouço jurídico-institucional do SUS, consagrando em grande parte os preceitos acordados por ocasião da 8ª Conferência Nacional de Saúde.
Tal arcabouço está estabelecido no capítulo sobre seguridade social da Constituição Federal de 1988 e detalhado na Lei n. 8.080, de 1990, sobre a organização dos serviços, e na Lei n. 8.142, também de 1990, sobre a participação comunitária e o financiamento do sistema.
Além disso, diversas portarias ministeriais regulamentaram o SUS, especialmente as que originaram as Normas Operacionais Básicas – NOB de 1991, 1993 e 1996.


O texto completo destas leis encontra-se no documento Principais legislações do Sistema Único de Saúde. (MINAS GERAIS, 2013), disponível na Biblioteca do curso.
A implantação do SUS no conjunto do país acontece de forma gradual ao longo dos anos 1990.
Os preceitos para governar a política setorial da área de saúde foram apresentados na Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, em sua Seção II - Da Saúde, Capítulo II - Da Seguridade Social, Título VIII - Da Ordem Social.
Sob o lema “Saúde: direito de todos, dever do Estado”, seus princípios podem ser resumidos em alguns pontos básicos:
Além disso...

A Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, “dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”, ou seja, detalha o conteúdo constitucional.
Essa lei define os papéis institucionais de cada esfera governamental no plano da gestão, a estrutura de financiamento e as regras de transferência de recursos entre os diferentes níveis de governo, através dos fundos de saúde.
Com relação ao modelo proposto, o caráter automático e imediato das transferências entre os diferentes fundos de saúde ficou prejudicado em função de veto governamental, sendo retomado pela Lei n. 8.142/90.
A Lei n. 8.142, promulgada em 28 de dezembro de 1990, “dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências”.
Essa lei institui os conselhos de saúde e confere status público aos organismos de representação de governos estaduais e municipais, como o Conass (Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde) e o Conasems (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde).


Pode-se dizer, para fins analíticos, que o conjunto dos princípios políticos e técnicos do SUS, assim como suas diretrizes operacionais, podem ser agrupados como representando:
Estes conceitos serão aprofundados nos temas deste módulo, conforme apresentados a seguir:
Para continuar seus estudos, siga para o Tema 3.1. O SUS como um novo pacto social.
O novo pacto social envolve o duplo sentido de que a saúde passa a ser definida como um direito de todos, integrante da condição de cidadania social, passando a ser considerada um dever do Estado, o que implica responsabilidade e solidariedade do conjunto da sociedade.
Distingue-se do modelo anterior, que se baseava na ideia de seguro social, em que o direito estava restrito às clientelas envolvidas diretamente com o financiamento do sistema, por meio das contribuições sociais previdenciárias.
Aqui se configura o modelo da seguridade social, em que as clientelas são beneficiadas independentemente de sua contribuição ao financiamento do sistema, porque este é assumido pelo conjunto da sociedade.
O SUS requalifica o direito à saúde e a responsabilidade do Estado, conforme destacado abaixo. Clique em cada item para ver mais:
O direito à saúde deixa de ser privilégio dos contribuintes da previdência e se estende a todos os cidadãos.
O Estado deixa de ser uma mera agência do seguro social em saúde e passa a ser o responsável pela sua garantia a todos os cidadãos.
No plano do arcabouço legal, o direito de todos manifesta-se na garantia do acesso universal e igualitário aos serviços de saúde, isto é, nos preceitos da universalidade e da equidade.


A Constituição Federal estabelece:
"Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. " (BRASIL, 1988).
O dever do Estado se expressa num pacto de solidariedade do conjunto da sociedade e funda-se num novo modelo de financiamento. Fica estabelecido que a responsabilidade pelo financiamento do SUS é das três esferas de governo e que cada uma deve assegurar o aporte regular de recursos ao respectivo fundo de saúde.
Conforme determina o artigo 194 da Constituição Federal, a saúde integra a seguridade social, juntamente com a previdência e a assistência social.
No inciso VI do parágrafo único desse mesmo artigo, está determinado que a seguridade social será organizada pelo poder público, observada a “diversidade da base de financiamento”.
Já o artigo 195 determina que a seguridade social será financiada com recursos provenientes dos orçamentos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, e de contribuições sociais.
As principais fontes específicas da seguridade social incidem sobre:
Até 1992, todas essas fontes integravam o orçamento do Ministério da Saúde (MS) e ainda havia aporte significativo de fontes fiscais (Fonte 100 – Recursos Ordinários, provenientes principalmente da receita de impostos e taxas).
A partir de 1993, deixou de ser repassada ao MS a parcela da contribuição sobre a folha de salários (Fonte 154, arrecadada pelo Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS).
Atualmente, as fontes que asseguram o maior aporte de recursos ao MS são a contribuição sobre o faturamento (Fonte 153 – Cofins) e a contribuição sobre o lucro líquido (Fonte 151), sendo que os aportes provenientes de fontes fiscais são destinados praticamente à cobertura de despesas com pessoal e encargos sociais.
Dentro da previsibilidade das contribuições sociais na esfera federal, no âmbito da seguridade social, foi criada, ainda que em caráter provisório, uma fonte específica para financiamento do SUS – a contribuição provisória sobre movimentação (CPMF). Posteriormente revogada.
A solução definitiva depende de uma reforma tributária que reveja essa e todas as demais bases tributárias e financeiras do governo, da seguridade e, portanto, da saúde.
Nas esferas estadual e municipal, além dos recursos oriundos do respectivo Tesouro, o financiamento do SUS conta com recursos transferidos pela União aos estados, e pela União e estados aos municípios.
Alguns autores relacionam a universalização da atenção pública com a expansão de clientela dos planos e seguros privados.
A deterioração dos serviços de saúde, decorrente do desinvestimento na rede pública, agora sobrecarregada com usuários até então excluídos, teria pressionado setores de classe média e trabalhadores especializados a buscarem melhor qualidade na esfera privada.
A isso se chamou “universalização excludente” (FAVERET; OLIVEIRA, 1990).
Na verdade, a expansão dos planos privados de saúde foi muito facilitada por incentivos governamentais, como o abatimento do imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas.
Com isso, finalizamos o Tema 3.1. Siga, agora, para o Tema 3.2. O SUS como um novo desenho político-institucional.
O novo desenho político-institucional refere-se à ideia de que a implementação do novo sistema de saúde, agora universal, deveria ocorrer de forma inovadora, com estruturas ágeis e compatíveis com as novas tarefas e compromissos do sistema.
Deveria superar a fragmentação institucional, o centralismo gerencial e o padrão burocrático de decisão na execução de ações, heranças do modelo anterior.
A remodelação institucional proposta foi concebida sob a inspiração de um novo padrão de relação Estado–sociedade, de forma a viabilizar a responsabilidade pública sobre a saúde.
Ao desenhar uma nova forma de exercer a gestão pública da saúde, buscando melhorar o desempenho do Estado, pode-se afirmar que a Reforma Sanitária antecipava alguns dos preceitos que mais tarde estariam presentes na Agenda de Reforma do Estado, pelo menos nas suas prescrições mais voltadas para melhorar o desempenho estatal no exercício da responsabilidade pública.
Buscava-se um novo formato do Estado, de modo a favorecer sua agilidade e permeabilidade à sociedade.
Além da unificação dos comandos institucionais, as categorias que nortearam o novo desenho foram a descentralização e a participação social.
Os marcos aqui são dados pelas Leis n. 8.080/90 e n. 8.142/90, que detalham a nova configuração e estabelecem os mecanismos operacionais para a descentralização político-administrativa e para a participação através dos conselhos de saúde.
Quanto à unificação/descentralização, a legislação é bastante clara ao definir a situação-objetivo da direção única em cada esfera de governo.
A Lei n. 8.080/90 define, em seu artigo 7°, diversos princípios, entre os quais:
"IX – descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo:
a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;
b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde. " (BRASIL, 1990).
Para facilitar as relações entre as esferas governamentais, foram instituídos novos espaços denominados comissões intergestores:

A participação manifesta-se na obrigatoriedade da constituição de conselhos de saúde, em todos os níveis de governo e na sua definição como membros do Poder Executivo.
A Lei n. 8.142/90, como vimos, “dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências”.
Em seu artigo 1º, parágrafo 2º, lê-se que:
"O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de governo " (BRASIL, 1990).
Trata-se, portanto, de um organismo oficial que é parte do Executivo.
O chamado caráter paritário decorre de regras de composição dos conselhos: a metade dos conselheiros deve ser formada por representantes dos usuários e a outra pelos setores que oferecem e executam os serviços, ou seja, um conjunto composto pelos profissionais, prestadores de serviços e representantes governamentais.

Quanto à identidade do Conselho, ela é claramente a de um organismo do Executivo, o que a diferencia da câmara dos vereadores (Legislativo), do Ministério Público e do Judiciário. Como a questão “saúde” passa comumente por esses três níveis de poder, são esperados conflitos, mas, também, reforço mútuo entre as iniciativas dessas esferas.
As dúvidas quanto à dinâmica dos conselhos concentram-se na área política. A solução para isso está justamente na implementação desses organismos e na construção gradual de relações mais firmes entre os governos eleitos e os representantes de segmentos sociais.
As conferências de saúde, cuja realização é prevista pela legislação para cada quatro anos, representam um momento privilegiado nessa construção, tanto no tocante à legitimidade das políticas quanto no que diz respeito à representatividade dos conselheiros.
Os conselhos de saúde, apesar de sua rápida multiplicação pelo país, têm tido desempenhos diferenciados:
Alguns obstáculos são muitas vezes apontados para a efetiva participação dos conselhos no processo decisório da política de saúde:
Contudo, além do Conselho Nacional de Saúde ter se firmado como um fórum privilegiado no processo decisório do setor, esse tipo de organismo vem se disseminando rapidamente pelo país. O início dos anos 1990 marcou a rápida expansão dos conselhos.
Com isso, finalizamos o Tema 3.2. Siga, agora, para o Tema 3.3. O SUS como novo modelo técnico-assistencial.
O novo modelo técnico-assistencial baseia-se numa concepção ampliada do processo saúde-doença, em que o acesso a bens e serviços de saúde é apenas um dos componentes de um processo que depende essencialmente de políticas públicas mais amplas, capazes de prover qualidade de vida.
Distingue-se do modelo anterior, que dissociava inteiramente as ações preventivas das ações curativas, a saúde coletiva da atenção individual, e era inteiramente centrado no atendimento à demanda por assistência médica.
Além do artigo 196, que vincula o direito à saúde e à implementação de “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e outros agravos...”, a Constituição estabelece:
"Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade. " (BRASIL, 1988).
A Lei n. 8.080/90, em diversas passagens, especifica o que se entende por atenção integral:
"Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II – integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema. " (BRASIL, 1990).
A integralidade da assistência em saúde inclui quatro ações:
A articulação entre os níveis de atenção, garantindo a primazia das ações de promoção e prevenção, e também as de assistência a doentes.
A articulação entre as unidades de uma rede, das mais básicas às mais complexas tecnologicamente, seguindo uma distribuição e um ordenamento espacial compatível com a demanda populacional de cada território (regionalização e hierarquização), garantindo a referência e a contrarreferência.
A articulação em cada unidade (entre os serviços) e em cada serviço (entre as diversas ações), visando a uma ação integrada para cada problema e para cada indivíduo ou coletividade coberta.
A oferta de serviços cuja organização atenda à demanda espontânea e à programação de ações para problemas prioritários.
A integralidade importa, assim, numa oferta adequada e oportuna de recursos tecnológicos necessários para prevenir ou para resolver problemas de saúde, seja dos indivíduos ou da coletividade.
No entanto, esse talvez tenha sido o aspecto menos desenvolvido no SUS.
Nem a legislação é exaustiva a respeito, nem as sucessivas NOB lograram enfrentar a questão da reformatação dos processos de trabalho no interior do SUS, haja vista a grande pressão provocada tanto pela tradição assistencial dos profissionais quanto pela demanda reprimida por assistência médica.

Para aprofundar seus estudos, leia os textos
Política de saúde e equidade. (VIANA; FAUSTO; LIMA, 2003) e Projeto Integrar: avaliação da implantação de serviços integrados de saúde no Município de Vitória, Espírito Santo, Brasil. (COSTA-E-SILVA; RIVERA; HORTALE, 2007), também disponíveis na Biblioteca do curso.

Preencha as caixas do formulário com as letras correspondentes aos conceitos indicados a seguir. Em seguida, clique no botão "Ver respostas" e confira os resultados.
Com isso, finalizamos o estudo de todos os temas do Módulo 3. Siga, agora, para o Módulo 4. Os anos 1990 e a implantação do SUS: desafios e inovações.