Os anos 1990 são aqueles em que o modelo proposto para saúde enfrenta o teste da realidade.
O processo de regulamentação do SUS, feito por meio das Normas Operacionais Básicas (NOB), foi gerando efeitos sobre sua configuração institucional, ora confirmando e reforçando aspectos previstos, ora desvirtuando seu desenho original, muitas vezes apontando para mudanças importantes em sua lógica.
É claro que isso sempre ocorre nas políticas públicas, já que elas incidem e geram efeitos sobre indivíduos e grupos sociais que têm seus próprios interesses e valores e lutam por eles, mesmo que não seja de forma organizada ou ativa.
A implantação do SUS desenvolve-se numa conjuntura muito diferente daquela em que se deu a sua concepção e institucionalização. Em função disso, nos seus primeiros anos, o sistema viveu momentos paradoxais, expressivos das tensões suscitadas por sua implementação.
Nascido no ambiente democratizante da Nova República, característico do final dos anos 1980, sua operacionalização teve de enfrentar os ventos desfavoráveis do ajuste estrutural da economia e da crise fiscal e de legitimidade do Estado que, já há alguns anos, se situava no epicentro das preocupações nas sociedades da Europa e dos Estados Unidos, manifestando-se na maré do pensamento e das práticas do neoliberalismo.
Neste módulo, analisaremos a política de saúde nos anos 1990 diante da complexidade do desafio representado pela implementação do Sistema Único de Saúde e diante dos avanços no modelo de descentralização adotado pela política de saúde. Também discutiremos as Normas Operacionais Básicas do SUS (NOB), como instrumentos que definem os objetivos e diretrizes estratégicas para o processo de descentralização da política de saúde.
Este módulo está organizado em dois temas:
Siga, agora, para o Tema 4.1. As Normas Operacionais Básicas 91 e 93.
As grandes inovações nos anos 1990 foram presididas por três instrumentos legais, a saber: as NOB 01/91, 01/93 e 01/96, chamadas respectivamente de NOB-SUS 91, NOB-SUS 93 e NOB-SUS 96, editadas pelo Ministério da Saúde.
A NOB-SUS 91, publicada em janeiro daquele ano, expressava o novo clima político nacional, bem caracterizado pela eleição do presidente Fernando Collor, em fins de 1989.
Ela veio com a finalidade de disciplinar e padronizar os fluxos financeiros entre as esferas de governo e pretendeu combater a propalada ineficiência das redes públicas federal, estaduais e municipais, acusadas de ociosas e caras.
Para tanto, universalizou o pagamento por produção de serviços nas relações intergovernamentais, em substituição ao pagamento por orçamento até então vigente, através de convênios.
As unidades de saúde próprias de estados e municípios, inclusive as transferidas, passariam a ser financiadas de acordo com sua produção, obedecendo à mesma sistemática e às mesmas tabelas de procedimentos utilizadas na rede privada contratada e conveniada ao SUS.

Os textos completos dessas NOB podem ser lidos na publicação Legislação estruturante do SUS (BRASIL, 2011). A NOB 91 encontra-se na p. 65; a NOB 93, na p. 101; e a NOB 96, na p. 128.
A NOB-SUS 91 representou o primeiro ato normativo de envergadura nacional no âmbito do SUS e teve impacto significativo.
De um lado, representou um retrocesso na medida em que:
Por outro lado, impulsionou a capacitação municipal para a administração, na medida em que criou a configuração do município e estado “habilitados”.
A gestão descentralizada exigia, para o acesso aos recursos financeiros federais, o cumprimento de pontos considerados fundamentais para a implantação do SUS, como:
Gestão municipalizada de unidades federaise estaduais.
Funcionamento do Conselho de Saúde e do Fundo de Saúde.
Desenvolvimento de estrutura técnica de administração, tais como a criação dos sistemas de informação e de vigilância epidemiológica.
A adesão dos municípios à NOB 91 foi lenta e os incentivos financeiros inconstantes, mas os passos essenciais rumo à efetiva descentralização do sistema estavam dados e, após dois anos de vigência, mais de mil municípios brasileiros encontravam-se habilitados, formando a base das condições de gestão progressiva, a partir de 1993.
Podem ser considerados os seguintes efeitos positivos nesse período:
Enorme incremento, sobretudo na esfera municipal, da capacidade institucional e técnica para a gestão da saúde, inédita na história e na cultura municipal do país.
Instância permanente e deliberativa, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política municipal de saúde, com composição e atribuições previstas em lei municipal, observando o disposto na Lei n. 8.142, de 1990.
A NOB-SUS 93, editada em maio de 1993, situou-se em um contexto político bastante diferente, onde o governo Itamar Franco, por intermédio do ministro Jamil Haddad, procurava restaurar o compromisso com a implementação do SUS, tal como originalmente tinha sido desenhado.
Assim, as resoluções da 9ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1992, às vésperas do impeachment de Collor e com o lema “Municipalização é o caminho”, representaram a base política e técnica para nova NOB.

Para se aprofundar sobre o assunto, leia o excelente artigo do Professor Paulo Buss (1991) A IX Conferência Nacional de Saúde.

Com a NOB-SUS 93, foi estabelecida a municipalização progressiva e gradual, em estágios, de forma a contemplar os diversos graus de preparação institucional e técnica dos municípios para assumir a gestão da saúde.
A cada estágio correspondia um certo número de requisitos gerenciais a serem cumpridos pelo município, ao qual então cabia uma autonomia crescente na gestão dos recursos, incluindo os da rede privada contratada.
Comissões Intergestores Tri e Bipartites passaram a configurar o espaço institucional de distribuição pactuada de recursos e atribuições entre os níveis federal, estadual e municipal.
Sobre essas comissões, diz a NOB 93:
"O gerenciamento do processo de descentralização no SUS (...) tem como eixo a prática do planejamento integrado em cada esfera de governo e como foros de negociação e deliberação as Comissões Intergestores e os Conselhos de Saúde (...) " (BRASIL, 1993).
Essas comissões bipartites existem hoje em todos os estados, além da tripartite nacional.
A Comissão Intergestores Tripartite (CIT) tem caráter paritário, nela estando representados o Ministério da Saúde, o Conass e o Conasems, e “tem por finalidade assistir o Ministério da Saúde na elaboração de propostas para a implantação e operacionalização do SUS, submetendo-se ao poder deliberativo e fiscalizador do Conselho Nacional de Saúde”, como consta da NOB.
No âmbito estadual, as Comissões Intergestores Bipartite (CIB) são formadas, paritariamente, por dirigentes da secretaria estadual de saúde e do órgão de representação dos secretários municipais de saúde do estado, “sendo a instância privilegiada de negociação e decisão quanto aos aspectos operacionais do SUS (...) cujas definições e propostas deverão ser referendadas ou aprovadas pelo respectivo Conselho Estadual”.


Ao longo das reuniões da CIT, têm sido tratados temas diversos que passam:
As reuniões são sistemáticas e mensais, realizadas em Brasília, e organizadas pelo Ministério da Saúde (MS).
Muitos itens aí tratados são remetidos ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) ou decorrem de deliberações ou solicitações desse organismo.
As decisões adotadas pela CIT muitas vezes resultam em portarias do MS e servem de regulação do sistema sanitário.
Sua dinâmica, muitas vezes, entra em conflito com o CNS, e nas atas de reuniões do CNS podem-se verificar os protestos, inclusive algumas propostas de extinção da CIT, que chegaram a ser discutidas, mas não aprovadas, na 10ª Conferência Nacional de Saúde.
A NOB 93, quando criou as comissões intergestores, previu que as representações municipais teriam uma atuação destacada, por reconhecerem aí uma oportunidade única de equilibrar as relações dos municípios com os mecanismos de decisão concentrados no Ministério da Saúde e nas secretarias estaduais.
Pode-se dizer que, em meados da década de 1990, o SUS apresentava um balanço positivo em seu processo de implantação, apesar de as opiniões serem muito diversas e refletirem o crescimento dos próprios estudos sobre a implantação do SUS.
Além disso, as discussões sobre a saúde extrapolam o limite acadêmico e aparecem nos meios de comunicação, pois interessam aos políticos, às lideranças sociais, aos médicos, aos enfermeiros, aos sociólogos, aos economistas e a muitos outros.
Com isso, finalizamos o estudo do Tema 4.1. Siga, agora, para o Tema 4.2. A NOB 96 – concepção ampliada de saúde.
Fruto do processo de implementação do SUS, expresso na cultura e na prática da gestão descentralizada e pactuada, a NOB 96 foi exaustivamente debatida na CIT, aprovada no Conselho Nacional de Saúde, submetida à 10ª Conferência Nacional de Saúde e, finalmente, publicada em 11 de novembro de 1996.
Ela apareceu na base da necessidade de avançar no conceito da autonomia municipal, reforçando as instâncias colegiadas (tri e bipartites) e de induzir, em escala nacional, mudanças na lógica do modelo assistencial e na organização da oferta de serviços.
De fato, o município passava a ser o responsável imediato pelo atendimento das necessidades e das demandas de saúde da sua população e das exigências de intervenções saneadoras em seu território.
Buscava-se, dessa forma, a plena responsabilidade do poder público municipal, que tanto se responsabiliza como pode ser responsabilizado, ainda que não isoladamente.
Os poderes públicos estadual e federal aparecem sempre como corresponsáveis, na respectiva competência ou ausência da função municipal (inciso II do Artigo 23 da Constituição Federal).
Essa responsabilidade, no entanto, não excluía o papel da família, da comunidade e dos próprios indivíduos na promoção, proteção e recuperação da saúde.
A NOB 96 destaca-se nesse período principalmente por dois aspectos:
Vejamos cada um deles.

De forma inédita, a NOB-SUS 96 incorporava a concepção de saúde constitucionalmente estabelecida, mas jamais operacionalizada. Assim, considerava que a atenção à saúde encerra todo o conjunto de ações levadas a efeito pelo SUS, em todos os níveis de governo, para o atendimento das demandas pessoais e das exigências ambientais, compreendendo três grandes campos:
O da assistência, em que as atividades são dirigidas às pessoas, individual ou coletivamente, e que é prestada nos âmbitos ambulatorial e hospitalar, bem como em outros espaços, especialmente no domiciliar.
O das intervenções ambientais, no seu sentido mais amplo, incluindo as relações e as condições sanitárias nos ambientes de vida e de trabalho, o controle de vetores e de hospedeiros e a operação de sistemas de saneamento ambiental (mediante o pacto de interesses, as normalizações, as fiscalizações e outros).
O das políticas externas ao setor saúde, que interferem nos determinantes sociais do processo saúde-doença das coletividades, de que são partes importantes as questões relativas às políticas macroeconômicas, emprego, habitação, educação, lazer e disponibilidade e qualidade dos alimentos.
A NOB 96 acrescentava que as ações de política setorial em saúde, bem como as administrativas (planejamento, comando e controle), são inerentes e integrantes do contexto daquelas envolvidas na assistência e nas intervenções ambientais.
Nessa perspectiva, as ações de comunicação e de educação também compõem, obrigatória e permanentemente, a atenção à saúde.
É importante assinalar que existem, da mesma forma, conjuntos de ações que configuram campos clássicos de atividades na área da saúde pública, constituídos pela agregação simultânea de ações próprias do campo da assistência e das intervenções ambientais, de que são partes importantes as atividades de vigilância epidemiológica e de vigilância sanitária.
A NOB 96 estabelecia uma divisão e um compartilhamento formal de responsabilidades entre as esferas de governo, reforçando o esquema decisório criado pela NOB 93 e consagrado na prática – comissões intergestores e conselhos de saúde.
O desempenho dos papéis dos administradores concretizava-se mediante um conjunto de responsabilidades, caracterizando a palavra-chave do novo modelo: a responsabilização de cada gestor, de cada instância de governo.
Esse novo paradigma configurou, assim, um instrumento altamente favorecedor na implantação de um novo modelo de atenção à saúde, até então centrado na doença. Nessa transformação, destaca-se a atenção integral, uma vez que o modelo abarca o conjunto das ações e dos serviços de promoção, de proteção e de recuperação da saúde.

Entre os novos conceitos introduzidos pela NOB 96, ressaltam-se os relativos à gestão e à gerência. Assumir a gestão significa apropriar-se do comando do sistema, o que é de exclusiva competência do poder público.
Assim, são gestores do SUS o prefeito e o secretário municipal de Saúde, o governador e secretário estadual de Saúde, e o presidente da República e o ministro da Saúde, que representam, respectivamente, os governos municipais, estaduais e federal.
No que se refere à gerência, assumi-la significa responsabilizar-se pela administração, ou seja, dirigir uma unidade ou órgão prestador de serviços de saúde – ambulatório, hospital, instituto, fundação etc. – que presta serviços ao sistema.
Dessa forma, a administração de estabelecimentos prestadores de serviços pode ser estatal ou privada, esta última desde que conveniada ou contratada por um gestor do SUS.
Ao longo dos anos 1990, o SUS tem, sem dúvida, contabilizado alguns pontos favoráveis, apesar de a palavra “crise” rondar o sistema de saúde desde o nascedouro e refletir as aspirações sociais não contempladas.
Ocorreu grande extensão de programas de saúde pública e de serviços assistenciais para o conjunto da população, incorporando itens de alta complexidade, que outrora estavam restritos aos contribuintes da previdência social.
É importante reconhecer a persistência de alguns problemas. Se a regulamentação da EC n. 29/2002 se deu em 2012, através da Lei Complementar n. 141, especificando os percentuais que os entes federativos devem aplicar no setor saúde, assim como qualificando o que é gasto em saúde, a questão do financiamento insuficiente ainda não foi equacionada. Esses assuntos serão abordados com mais detalhes ainda nesta unidade, no último tema do próximo módulo.
Além disso, a qualidade dos serviços é muito desigual, e o que funciona adequadamente é dissolvido no mar de irregularidades, na falta de serviços essenciais e nas dificuldades encontradas pelos usuários em se deslocarem no interior do SUS, principalmente quando necessitam de tratamentos mais complexos.
As falhas do SUS repercutem, portanto, no seu mais visível ponto fraco – o acesso e a utilização dos serviços. Forma-se, então, um consenso entre os atores relevantes a respeito da:
Com isso, finalizamos o estudo dos temas do Módulo 4. Siga, agora, para o Módulo 5. A Reforma Sanitária brasileira avança: regionalização, pactuação intergestores e Contrato Organizativo da Ação Pública.