UNIDADE I
Gestão de risco de emergências e desastres em saúde pública

Módulo 1 • Cena 2

Introdução a emergências e desastres em saúde pública

Descrição do cenário de risco

A barragem de rejeitos do Guri, da mineradora Buffalo, foi construída com a técnica de alteamento a montante (o próprio rejeito é usado para construir a barragem). Essa técnica é de baixo custo, porém muito mais insegura, exigindo maior controle e fiscalização intensa.

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Veja um exemplo de como funciona uma barragem construída com a técnica de alteamento a montante.

Foto: Peter Ilicciev (2019). Fonte: Fiocruz Imagens.

A barragem do Guri é considerada de baixo risco, porém de alto dano potencial associado. Em termos práticos, significa que embora a chance de rompimento seja baixa, no caso de ocorrer, o impacto seria altamente danoso, constituindo-se, portanto, em uma ameaça tecnológica.

Na área de risco ou no entorno dela trabalham diariamente 1.234 pessoas, entre funcionários contratados diretamente pela empresa e terceirizados. A maior parte reside no município, mas há também trabalhadores que vêm de municípios vizinhos.

Nas áreas adjacentes à mineradora moram cerca de 300 famílias, a maioria composta por pequenos e médios agricultores. Pecuaristas de pequeno porte residem próximo às margens do rio, em áreas já degradadas pelo uso e pela ocupação do solo, em decorrência do modelo de desenvolvimento econômico existente no município. Por ali também moram funcionários das pousadas que atendem aos turistas que procuram a região para ecoturismo e práticas esportivas.

José Marcos, responsável pela vigilância em saúde (VS), reside em Bandeira há anos e conhece bem as características do município e de sua população, como os grupos mais vulneráveis e as áreas mais frágeis. Ele também conhece bem os problemas ambientais que afetam a saúde da população. No entanto, com o crescimento da mineradora no território e com o fortalecimento do ecoturismo no município, ele começa a observar o surgimento de outras situações de risco que podem causar alterações no perfil epidemiológico da população, e se coloca em alerta.

Segundo os registros de José Marcos, nos últimos cinco anos o município vivenciou picos de casos de dengue, subindo de 26 casos, em 2014, para 690, em 2015, e 1.904, em 2016. Em 2017, voltou ao mesmo número de casos de 2014, e, em 2018, baixou para 18 casos. Por outro lado, ao mesmo tempo que se registrou queda nos casos de dengue, em janeiro de 2018, período de férias e de grande movimentação de turistas, foram registrados 13 casos de febre amarela, sendo que um deles resultou em óbito. Nesse mesmo mês foram confirmados quatro epizootias em primatas não humanos. Somando vetores, vírus e doenças envolvidas, José Marcos considerava que essas situações mereciam atenção para não se tornarem ESP.

Atendimento de emergência
Foto: Peter Ilicciev (2019). Fonte: Fiocruz Imagens.

O desastre

Marina, diretora da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do município, estava almoçando e ouviu um barulho forte que não soube identificar num primeiro momento. Finalizou seu horário de almoço e quando retornava para sua sala recebeu um telefonema, às 12h58. Era sua prima, moradora da área rural do município de Bandeira, avisando que a barragem de rejeitos da mineradora Buffalo havia rompido. No mesmo momento, Marina lembrou que, em função de uma grande enchente ocorrida no município três anos antes, o Hospital Geral da cidade, que normalmente só atende demandas encaminhadas, realizou, na ocasião, atendimentos de emergência para cuidar dos casos que não conseguiam chegar até a UPA. Como previa uma demanda maior de atendimentos de emergência, resolveu entrar em contato com Isabel, enfermeira-chefe do hospital geral do município, e pedir sua ajuda, além de tentar obter mais informações sobre o desastre.

Mesmo que inicialmente as informações se apresentassem desencontradas e incompletas, Isabel ficou muito preocupada, pois seu hospital atende à maternidade, responsável por realizar todos os partos da rede pública de saúde do município, bem como pelo cuidado à saúde da gestante. Considerando a gravidade do ocorrido, ela temia, principalmente, pelo agravamento da saúde das gestantes com gravidez de risco, como quadros hipertensivos, diabetes e doenças cardiovasculares. Apreensiva com a possibilidade de as demandas aumentarem, resolveu preparar sua equipe e toda a infraestrutura de que dispunha para emergências.

Foto: Vinicius Marinho (2008). Fonte: Fiocruz Imagens.
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Assista ao vídeo O rastro de destruição no rompimento da barragem em Brumadinho que mostra o que a população local vivenciou imediatamente após o desastre.

Neste mesmo instante, Fábio, coordenador do Centro de Atenção Psicossocial (Caps), realizava seus atendimentos e viu em seu celular várias mensagens sobre o ocorrido, incluindo vídeos da lama se espalhando e arrastando tudo pela frente. Inicialmente, pensou que eram imagens de algum outro local e voltou à rotina, pois alguns pacientes o aguardavam. Era uma sexta-feira, estavam no Caps local 28 pacientes, alguns aguardando atendimento e outros participando das atividades de terapia oferecidas na unidade.

José Marcos estava preenchendo relatórios em sua sala e recebeu a notícia do rompimento da barragem por outros colegas da vigilância em saúde, que adentraram a unidade aflitos. Ele pensou logo no seu grande amigo Márcio, presidente da Associação de Moradores de Bandeira e morador do entorno da barragem.

Barragem rompida
Foto: Antonio Cruz / Agência Brasil. Fonte: Wikimedia Commons.

Entrou imediatamente em contato com ele e, para seu grande alívio, Márcio respondeu. Estava extremamente aflito e informou que o rompimento tinha atingido muitas casas. Disse ainda que a lama havia chegado ao rio Azul e deu diversos detalhes da situação em campo.

José Marcos ficou muito preocupado, pois o rio Azul atravessa o centro da cidade. Além disso, mesmo que a lama não chegasse até a área urbana, o leito do rio poderia transbordar com o volume recebido da barragem na cabeceira do rio, inundando algumas áreas de risco.

Segundo as poucas informações fornecidas pela mineradora no primeiro momento, a lama da barragem era composta principalmente por rejeitos de minério de ferro, aminas (compostos orgânicos derivados da amônia e usados na separação do minério) e sílica. Nas primeiras horas após o rompimento não se sabia ao certo – e a mineradora não informou – se havia outras substâncias tóxicas no rejeito.

Especialmente em função do relato fornecido por Márcio diretamente do local do desastre, José Marcos teve a iniciativa de buscar informações oficiais sobre a situação e repassar para os colegas Marina (UPA), Fábio (Caps) e Isabel (Hospital Geral), bem como informar oficialmente o secretário de saúde do município. A Secretaria de Proteção de Defesa Civil do estado havia publicado um comunicado em seu site:

Uma barragem de rejeitos da mineradora Buffalo rompeu na tarde de sexta-feira (18 de outubro de 2018, às 12h54) no município de Bandeira, região metropolitana de Drummond, na altura do quilômetro 30 da rodovia Antônio Lisboa, atingindo principalmente trabalhadores da mineradora e comunidades rurais. A Secretaria de Proteção de Defesa Civil do Estado está em contato com a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, bem como com o Corpo de Bombeiros do estado, para analisar a situação e tomar todas as providências necessárias em relação ao desastre. Em breve publicaremos mais informações.

Algumas horas depois, outras notícias foram chegando de forma rápida e impactante. Após vários anos atuando no município, Isabel, Marina, José Marcos e Fábio, experientes profissionais de saúde, encontravam-se pela primeira vez em uma situação de ESP provocada por um desastre de grande proporção.

Na mesma noite do rompimento da barragem, o secretário de saúde do município convocou todos os representantes das áreas de saúde para uma reunião de emergência. Nela estavam presentes também representantes do Ministério da Saúde, da Secretaria Estadual de Saúde, profissionais da área de comunicação, além de instituições de assistência humanitária, dentre outros.

José Marcos, que havia levantado informações oficiais e conversado com Márcio, fez um relato do que sabia e sugeriu que o presidente da Associação de Moradores fosse incorporado ao grupo, pois conhecia muito bem o município e as diversas outras associações de moradores e de produtores rurais existentes. Inicialmente, muitos dos integrantes do grupo foram contra, alegando que aquele era um grupo operacional de caráter técnico. Mas na medida em que José Marcos relatou as informações repassadas por Márcio, todos perceberam que a presença de moradores com conhecimentos e experiências locais poderia ajudar, trazendo informações importantes sobre a situação real. Assim, Márcio foi convidado a integrar o grupo.

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Conheça um pouco mais sobre a importância da participação das comunidades na gestão de riscos, escutando o áudio do pesquisador Carlos Machado (ENSP/Fiocruz) a seguir.

Transcrição do áudio

Dentre os 13 princípios norteadores do Marco de Sendai para a redução do risco de desastre 2015-2030, é estabelecido que:

A redução do risco de desastres exige engajamento e cooperação de toda a sociedade. Exige, também, empoderamento e participação inclusiva, acessível e não discriminatória, com especial atenção para as pessoas desproporcionalmente afetadas por desastres, especialmente os mais pobres. Uma perspectiva de gênero, idade, incapacidades e cultura em todas as políticas e práticas; e a promoção da liderança de mulheres e jovens.

Narváez, Lavell e Ortega, no livro La Gestión del Riesgo de Desastres: un enfoque basado en procesos, também afirmam que a gestão do risco deve estar sujeita à participação e apropriação ativa pelos residentes; e acrescentamos também trabalhadores em risco e suas organizações.

Para os autores: “A importância das dimensões subjetivas do risco em sua avaliação e análise significa [...] que o processo de gestão deve necessariamente ser participativo, elevando sujeitos e autoridades de risco a atores e sujeitos de análise, formulação e decisão estratégica. A participação é um mecanismo de legitimidade e garantia de pertencimento, uma pedra angular no processo de gestão de risco, envolvendo diversos atores sociais.”

No Golfo do México, após o vazamento de petróleo cru em 2010, foram estabelecidos vários financiamentos de pesquisa para avaliar o impacto na saúde dos trabalhadores que atuaram na limpeza das praias, assim como pescadores e moradores. Estas pesquisas envolveram desde o início formas ativas de participação dos trabalhadores e comunidades atingidas, permitindo aprimorar a validade científica e melhorar a compreensão do problema considerando as preocupações locais, de modo que os estudos fossem mais relevantes e benéficos para os diversos grupos afetados.

Por fim, a própria característica das emergências e desastres, que produzem não só novos cenários de riscos, mas também incertezas, exige que a boa produção de conhecimentos e compreensão sobre esses eventos envolva não somente os métodos científicos tradicionais, mas também estes combinados com os saberes locais daqueles que vivenciam ou vivenciaram as situações de riscos e os eventos relacionados aos mesmos.

Foto: Força Nacional do SUS.

A secretaria de saúde do município de Bandeira tinha consciência de que parte do território de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS) estava situada em área com dano potencial alto, segundo o Relatório de Segurança de Barragens elaborado pelos órgãos federais. Apesar disso, no município não havia um Plano de Preparação e Resposta a Emergências em Saúde Pública e Desastres (PPR-Saúde). Mesmo sem um PPR e sem um levantamento prévio da capacidade de resposta do setor saúde municipal, mantiveram-se atentos e prontos para responder aos impactos causados pelos desastres, iniciando uma longa trajetória em busca da resiliência. Esse desastre, intensivo e de grande magnitude, não é considerado o de maior frequência no Brasil, já que a maior parte dos registros envolve desastres extensivos. Porém, no caso dos intensivos, um único evento como esse tem o potencial de causar uma série de impactos na saúde da população em curto, médio e longo prazos.

MÓDULO 1 • SUBSÍDIOS 1
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